DA PRóXIMA VEZ QUE FOR PERGUNTAR A ALGUéM “QUANDO é QUE TENS FILHOS”, CALE-SE Só

Quando metemos o útero de alguém na mesa pública da conversa, ou a sua possível experiência de maternidade, mexemos com todo o seu mundo, a começar pela autonomia corporal e passando por questões como qualidade de vida, experiências passadas de perdas gestacionais e dinâmica familiar

Não quero engravidar. Não quero ser mãe. Duvido que este meu desejo mude, ainda admitindo que possa haver uma possibilidade residual, até porque não é preciso ser mãe biológica para ser mãe. Vejo e imagino todo o processo de dar à luz e criar um bebé e, honestamente, não quero. Como no sábado passado fiz 30 anos, resolvi explorar algumas questões que nos últimos anos têm passado na minha cabeça acerca deste assunto.

Observei que, quando há pessoas alheias que me perguntam sobre os meus eventuais filhos, perguntam-me muito mais vezes “quando” os vou ter, ao invés de “se” os quero ter, o que teria os seus problemas na mesma. Como se o desejo de ser mãe fosse um dado adquirido por ser mulher (cis). Quando metemos o útero de alguém na mesa pública da conversa, ou a sua possível experiência de maternidade (porque não é preciso engravidar para se ser mãe) mexemos com todo o seu mundo, a começar pela autonomia corporal e passando por questões como qualidade de vida, experiências passadas de perdas gestacionais e dinâmica familiar.

Acima de tudo, querem-me vender a experiência de ser mãe como o culminar da maravilha do que é ser mulher, mas eu não compro essa definição. É precisamente esta ideia social de experiência de mulher como intrínseca à maternidade que faz com que muitas mulheres em idade fértil se sintam insuficientes quando querem engravidar e não estão a conseguir: sentem-se traídas pelo seu próprio corpo. Como escreve Emilie Pine em “Notes to Self”, há uma solidão muito específica ao lidar com infertilidade quando se quer ser mãe. Acho curioso como não vejo igualdade nesta tentativa de vender a experiência de ser pai como o culminar da experiência de ser homem, o que seria igualmente problemático. Só porque alguém nasceu com útero, não quer dizer que um instinto maternal tenha vindo atrelado, ou um relógio uterino com um temporizador predefinido. Tampouco acredito que haja um instinto que nos diga como ser mães e pais a partir do nada: é preciso aprender. E para aprender bem, é preciso querer.

Ser mãe vs. Estar grávida

Estar grávida e ser mãe não é um mar de rosas, é um processo de enorme transformação do corpo, que parece quase ficção científica: um ser humano a ser gerado dentro de outro ser humano. É incrível nesse sentido, pois podes sentir o feto a mexer-se dentro de ti, como se antes de conheceres o teu bebé já o conhecesses antes de nascer. Mesmo que assim seja, há muitas mulheres cis e pessoas que engravidam que passam mal durante a gravidez, quer por desconforto quer por problemas de saúde. Durante a gestação, há tendência para se ter problemas dentários, potenciar problemas psicológicos pré-existentes, possibilidade de diabetes, anemia, queda de cabelo, entre outros.

Para além do processo natural da gravidez, é importante referir que após uma perda gestacional, e ainda pior no caso de mortes fetais, as gravidezes que se seguem são pautadas pela ansiedade, pelo medo de acontecer outra vez.

Assim, este processo pode ser tudo menos tranquilo: não é preciso ter gostado de estar grávida para se gostar de ser mãe. Imaginem o que é passar por todo este processo com a crise obstétrica por que está a passar o SNS, com os serviços de urgência obstétrica e ginecológica comprometidos e extremamente limitados.

Dito isto, há quem tenha amado a gravidez, há quem não tenha gostado nada da experiência, classificando-a como um meio para atingir um fim. Ainda, há quem não queira engravidar e há quem não queira ser mãe.

Avançando para o pós-parto, é raro termos acesso de fora ao que realmente é o dia-a-dia para quem acabou de dar à luz. Não foi por acaso que um anúncio de produtos para o pós-parto foi banido da publicidade dos intervalos dos Óscares em 2020: foi considerado demasiado gráfico. Não tinha sangue, não era sexual, era só real: representava um verdadeiro pós-parto. Já se começa a falar mais desta realidade, mas não o suficiente, ainda é visto como algo que é suposto esconder. É tão irónico como consideram a gravidez um “estado de graça”, mas ao mesmo tempo querem que a mulher “recupere” a silhueta o mais rápido possível após a gravidez.

Quando vejo e ouço conversas em que alguma mulher cis diz que não quer engravidar, volta e meia envolve uma tirada de biologia não solicitada: “mas o teu corpo foi desenhado para engravidar e procriar”. Estou-me a marimbar para o que foi desenhado, ou deixou de ser. O meu corpo é meu. A minha cabeça também foi gerada para pensar por si. Além disso, o corpo de uma mulher infértil não é menos valioso do que o de uma mulher fértil e uma mulher que não tenha sido mãe biológica não é menos mulher do que uma que foi.

“Não sejas egoísta”

Não devo netos aos meus pais nem contribuintes novos ao meu país. O meu útero não é espaço público. A minha família não manda no meu corpo. Pago os impostos (e muitos) que deveriam garantir, como o próprio nome diz, a minha segurança social: a minha saúde, a minha reforma. Acho que não estamos a fazer as perguntas certas. Ao invés de pedirmos aos jovens para terem filhos, que tal perguntar:

  • Como podemos garantir todas as condições na gravidez, pós-parto e educação das crianças que possam incentivar ao máximo as pessoas que querem ter filhos a tê-los?
  • Como podemos criar políticas de imigração e inclusão para famílias, de forma a potenciar ainda mais o aumento de portugueses contribuintes? — em 2023, as contribuições dos imigrantes em portugal foram de 1500 milhões de euros
  • Como garantir que os impostos que os contribuintes estão a pagar pela sua segurança social realmente se reflitam na sua presente e futura segurança social efetiva?

Não podemos continuar a receber esta pressão de grupo para procriarmos sem sequer nos darem condições para realmente se poder criar filhos com condições. E mesmo num país ideal com todas as condições possíveis e imaginárias para criar filhos, se as pessoas não os quiserem ter, é com elas, é o seu corpo, a sua dinâmica familiar. “Mas depois a humanidade acaba”. Não, a Humanidade acaba quando não tratamos com dignidade as pessoas que estão agora vivas. Obrigar pessoas a terem filhos seria só imoral e desumano.

“Isso é egoísta, queres o teu tempo só para ti.” E se eu quiser o meu tempo para mim, qual é o problema? É o meu tempo, o meu. Mais depressa consideraria egocêntricas as pessoas que querem ter filhos só para terem uma versão miniatura delas mesmas, mas adiante.

“Um dia vais mudar de opinião”

Realmente um dia posso mudar de opinião, mas não é graças a um comentário. Aliás, um comentário destes só mostra condescendência, ao querer transmitir como que um sentimento de imaturidade em relação à pessoa com quem se fala. Não querer ter filhos não é sinónimo de imaturidade. Pode, antes, ser sinónimo do oposto, já que pressupõe que se observou e pensou no assunto. Uma opinião que contraria o padrão social leva muito mais raciocínio do que uma que simplesmente se deixa levar pelo caminho social previamente talhado como “o normal”.

Além disso, há dados polémicos que mostram que há um possível sentimento de arrependimento em se ter tido filhos, o que não significa que não se ame os filhos. A verdade é que esta pressão social interconectada com padrão de felicidade na vida adulta, pode levar a que algumas pessoas que não têm a certeza se realmente querem ser pais, a se aventurarem numa viagem para a qual não estavam preparadas. Este sentimento de arrependimento é um tabu muito grande, mas que não está necessariamente ligado ao amor que se sente pelos filhos. Mesmo alguém que ame ser pai ou mãe e ame os seus filhos, pode nem sempre gostar deles, já que as filhas/os/es são pessoas inteiras com as suas personalidades diferenciadas.

Para terminar este setor da condescendência e projeção de futuro, não poderia deixar de referir a maravilhosa possibilidade de congelar óvulos. Por me ter questionado se um dia mudaria de opinião, graças a todos os comentários que fui ouvindo, informei-me sobre este processo recentemente. Contactei a empresa mais conhecida e percebi que, antes de mais, esta possibilidade é um privilégio económico, já que ronda os 5 mil euros, e comporta um processo hormonal com implicações de saúde. Sendo eu uma pessoa com historial de depressão, a tomar medicação, precisaria, inclusive, de uma declaração do meu psiquiatra em como seria seguro prosseguir com o tratamento hormonal. Para somar a estas condicionantes, quanto mais cedo se congelar óvulos melhor, pela sua qualidade, sendo ideal antes dos 30, mas, ao mesmo tempo, legalmente os óvulos só podem ficar um máximo de dez anos em preservação. Contas feitas, não é assim tão simples. No entanto, é uma opção que poderia poupar muitos desgostos a muita gente e algo a pensar, no caso de haver um grande desejo em ser mãe ou da descoberta de alguma condição de saúde que possa pôr a fertilidade futura em risco.

“E depois quem cuida de ti?”

No meio de todos estes argumentos que procuram incentivar à procriação, não podia faltar esta visão do futuro, conectada com a temível solidão.

Mas então, vamos ver uma coisa: querem ter crianças ou cuidadores informais? É que se for assim, perguntem quando vamos dar à luz futuros cuidadores informais. Mais vale, é mais exato, e demonstra a verdadeira intenção nesta pergunta.

Pôr crianças no mundo, ou cuidar das que cá já estavam, adotando-as, é uma responsabilidade muito grande, que não deve ser abraçada por uma intenção futura de mero cuidado na velhice.

Claro que é bom que os filhos cuidem dos pais, mas essa pressão social também gera muita culpa em filhos que não têm condições para cuidar dos pais na velhice.

A responsabilidade de educar alguém e o amor incondicional

Acima de tudo, é importante perceber o que comporta cuidar de uma criança, de uma pessoa jovem. Arrisco-me a dizer que só quem continuaria a amar a sua criança, filho/a/e, após saber que ela é trans, gay, bissexual, queer, género fluído ou não binário é que deveria ser pai/mãe.

Mesmo que à primeira não goste da ideia de ter um filho/uma filha que não seja cis e hetero, tente perceber. Acima de tudo, ao invés de demonstrar este descontentamento aos seus filhos, fale com associações como a AMPLOS, que têm sessões de grupo com pais de pessoas LGBTI. Somos todas pessoas inteiras. Não o digo com mãe, digo-o como filha.

Mexe com o contexto familiar, mexe com tudo

Ter filhos mexe com tudo na vida de alguém: a relação em casal, os gastos mensais, a disponibilidade de tempo, a dinâmica familiar, a situação habitacional. Quando perguntam a alguém “quando é que tens filhos”, a resposta daria para uma tese sobre o estado do país e do mundo. Se a vossa intenção é ver as pessoas felizes, já que associam a construção de um projeto familiar à felicidade, perguntem antes se elas são felizes.

Não há um padrão de felicidade único. Sejam um bocadinho criativos na pergunta. Até algo como “sabes qual é o tempo para amanhã” é melhor opção a um “quando é que tens filhos”.

Quebrar com padrões sociais

Contrariar o padrão social de construção de vida e família requer muito sentido crítico. Há muitos “e ses” pelo caminho que têm de ser desmistificados. Não há nada de errado em querer seguir esse padrão namoro-casa-filhos e muito menos há algo de errado em questioná-lo.

Amo crianças, amo brincar com elas, mas também amo não ser eu quem tem de cuidar e de as educar de uma forma diária. Não é para mim. Sou madura o suficiente para observar e saber que cuidar de uma criança não é para mim. Adoro ser tia, prima, amiguinha. Não preciso de ser mãe, não quero ser mãe e é precisamente por não querer que não sou boa candidata a esse caminho. Não se preocupem com a minha possível solidão, preocupem-se com a vossa.

Dito isto, admiro muito quem quer realmente ter filhas/os. Admiro muito quem atravessa o processo de um parto. Admiro ainda mais quem é mãe/pai e se preocupa em educar as suas crianças com valores de liberdade e inclusão. Admiro, mesmo. A única coisa é que ser mãe não é para mim. E está tudo bem com isso. O meu desejo é, sem tirar nem pôr, ficar para tia.

Acabo com a melhor resposta que já ouvi à pergunta “quando é que tens filhos?”:

“Hoje não me dá muito jeito.”

2023-11-20T15:36:45Z dg43tfdfdgfd