NATUREZA DESUMANA

Como explica John Cleese, comediante e autor, estamos a atravessar uma época em que não há nuances, não há contexto, em que cada indivíduo acredita que apenas a sua ideia é boa, que apenas o seu sentimento é válido. Uma sociedade dividida por fundamentalismos identitários e intolerantes. Como todos acreditam que são melhores do que os outros, ninguém consegue ver os seus próprios defeitos.

As grandes revoluções sociais falhadas da história da humanidade tiveram em comum um princípio errado: a ideia de que é possível “reinventar” a natureza humana.

A discussão sobre a natureza humana tem sido um tema central na filosofia, na sociologia, na biologia, e em todas as ciências humanas ao longo dos séculos, épocas e tradições. Esta discussão aborda múltiplos aspetos, que na sua génese visam compreender quais os fatores biológicos, sociais e culturais que determinam os comportamentos humanos.

Tenha ou não o ser humano a capacidade de fazer escolhas livres, sem que as suas ações sejam determinadas por fatores fora do seu controlo, como a biologia e o ambiente, existem funções consideradas ancestrais e intrínsecas do instinto, como sejam a busca por comida para sobrevivência, abrigo e vestuário para proteção, e o sexo para a reprodução.

A socialização entre indivíduos é apontada como uma função acessória, pela necessidade de pertença a um grupo, de companheirismo e aceitação. Aliás, discute-se até que ponto os seres humanos são essencialmente individuais ou se a nossa natureza é coletiva, pela forma como equilibramos as necessidades individuais com as exigências da convivência e harmonia sociais.

A civilização humana foi erguida neste pressuposto de contenção do instinto, de certa forma opondo a natureza egoísta e brutal do ser humano, no seu estado natural sem governo, que Thomas Hobbes designou de "guerra de todos contra todos", com a ideia de que o ser humano é naturalmente bom, um nobre selvagem livre e em paz, segundo Jean-Jacques Rousseau, todavia corrompido pela sociedade promotora de desigualdade e conflito.

O ser humano enfrenta uma batalha constante entre o instinto, selvagem e ancestral, e o intelecto, capaz de apoiar modelos sociais alicerçados na cooperação e flexibilidade entre indivíduos. Esta “batalha” manifesta-se em diversos aspetos da vida quotidiana, na tomada de decisões, resposta a conflitos, competição por recursos, autocontrolo até na estruturação de sociedades complexas.

Este conflito irresolúvel poderá ter imprimido na natureza humana uma atitude competitiva, egoísta e agressiva. Ao perceber a causa e efeito das suas escolhas e ações individuais, contrárias aos interesses do grupo, os seres humanos tiveram de desenvolver mecanismos para retaliar contra as críticas, buscar apoios para as suas ações e evitar a condenação pelos seus atos.

As causas comuns que suportaram os grandes movimentos ideológicos e que moldaram o mundo moderno estão em declínio. O comunismo, o fascismo e o liberalismo influenciaram profundamente a sociedade oferecendo diferentes visões da ordem social. Segundo Yuval Noah Harari, estas tradições ideológicas estão a ser desafiadas por novas realidades sociais, tecnológicas e ambientais, e poderão dar lugar a novas forças, possivelmente não-biológicas, na tomada das decisões civilizacionais.

O individualismo, ainda que seja apontado como uma “não-ideologia”, é uma característica dominante da era atual. No entanto, por ter o indivíduo no núcleo central, não se está a revelar capaz de fazer frente a desafios globais como são as mudanças climáticas e a crescente influência da tecnologia na sociedade. As soluções para estes desafios exigem novas formas de cooperação e uma reconsideração de como os valores individuais e coletivos se entrelaçam.

Não há dúvida de que é necessário equilibrar os direitos dos indivíduos com os desafios coletivos que enfrentamos como espécie. Este equilíbrio seria possível através de uma nova causa comum para a humanidade, que não existe. A crise ideológica transformou-se numa crise identitária, e a sensação de mudança sem um objetivo claro e definido está a provocar uma ansiedade social sem precedente.

Por não existir uma visão coletiva do mundo, ou até visões rivais, os indivíduos estão a revelar a sua natureza egocêntrica, agressiva e alienada.

Os exemplos são visíveis todos os dias no palco neurótico das redes sociais. Como explica John Cleese, comediante e autor, estamos a atravessar uma época em que não há nuances, não há contexto, em que cada indivíduo acredita que apenas a sua ideia é boa, que apenas o seu sentimento é válido. Uma sociedade dividida por fundamentalismos identitários e intolerantes. Como todos acreditam que são melhores do que os outros, ninguém consegue ver os seus próprios defeitos.

Sem uma ideologia capaz de responder às exigências da transformação social, o discurso político preenche este espaço com discursos de ódio, demagogia e populismo. Estar contra ou a favor de direitos individuais avulsos e dispersos, de forma a agradar cada indivíduo e todos ao mesmo tempo, passa a ser uma espécie de “ideologia”, difícil de concretizar pela forma como as sociedades e as instituições estão estruturadas.

A solução não é simples. Não é possível reinventar a natureza humana. Entregar às atuais estruturas de poder o destino da humanidade pode ser, nesta conjuntura, um erro maior. Perante o individualismo egoísta, o aproveitamento político da instabilidade social, a dissociação da realidade das redes sociais, talvez seja importante chamar a atenção dos adultos à mesa para a frase do pediatra e autor francês Aldo Naouri quando disse que “uma criança bem-educada é uma criança que sabe que os outros existem".

2024-03-29T08:12:08Z dg43tfdfdgfd