COXAS DE Rã, URTIGAS, BRULéE DE FOIE GRAS E VINHOS A “MEXER COM OS SENTIDOS”

Os vinhos de António Maçanita harmonizaram com as criações do chef José Gala na sexta edição das Rotas da Insulana de Navegação, na ilha de São Miguel, nos Açores. Enquanto se aguarda pela próxima, a de 2 de novembro, recorda-se o menu que se revelou um “caldeirão de emoções” e ajudou a “quebrar barreiras”

Casa cheia começa a ser sinónimo de Rotas da Insulana de Navegação. Voltou a acontecer na sexta edição destes jantares vínicos, que decorreu no restaurante Balcony do Grand Hotel Açores Atlântico, em São Miguel. Em clima de celebração, o chef José Gala serviu um menu desafiante, rico em “paixão” e memórias e que, como definia o chefe de sala Acácio Oliveira, casou com a “ousadia e inquietação” que se conhecem ao produtor de vinhos António Maçanita.

A ideia inicial era a ilha do Pico inspirar esta viagem. Todavia, como além da Azores Wine Company o parceiro vínico desenvolve também trabalho no Alentejo, Douro e na Madeira, a enogastronomia alargou-se em alcance. Conjugando essa premissa com as vivências de José Gala, o menu revelou-se um “caldeirão fervilhante de emoções e ideias”. Por outro lado, na ótica de António Maçanita os vinhos “não devem ser consensuais, mas mexer um bocadinho com a cabeça e os sentidos”, o que permitiu uma boa fruição.

O ponto de partida era o Pico, daí que o “Carpaccio de novilho dos Açores” tenha servido com carvão vegetal, a lembrar o negrume basáltico abundante nessa ilha. Um blend de dois queijos regionais com 24 meses e as alcaparras de salina acrescentavam intensidade à carne, com a esferificação de azeite a ligar. Para acompanhar, um rosé Fita Preta alentejano “com robustez e agradável”, defende Acácio Oliveira.

Seguiu-se a entrada, um dos melhores momentos da noite: “A enguia fumada, a coxa de rã, o caviar imperial”. A coxa de rã reaviva a memória do tempo em que o avô do chef o levava, em miúdo, a uma taberna no Alentejo. Aí, o cante mesclava-se com “o cheiro a vinho” e grupos de amigos partilhavam este tipo de petiscos. “Não me deixavam provar o vinho, mas deixavam-me molhar o dedo e provar a proteína”, recorda. José Gala nasceu, porém, no Barreiro, e a inspiração para a enguia surge da sua vivência ribeirinha, numa zona mais salgada do Tejo, entre ensopados e enguias fritas. A enguia serve fumada, de pele crocante, na companhia da mostarda Dijon Edmond Fallot e várias texturas de urtigas, um “elemento lúdico interessante para dar a provar, já que este era um prato de descoberta”. O pairing vínico coube a um Malvasia de mesa, onde se manifesta a “identidade do Douro”. António Maçanita aceitou o desafio “de fazer envelhecer bem esta casta”, capaz de potenciar pratos mais complexos.

Arroz de lapas e amêijoas de Santo Cristo

O mar reina no primeiro prato principal, onde entram a nobreza do salmonete-legítimo, do lavagante azul e a veia popular de um arroz cremoso de lapas. A técnica adaptou-o à ocasião, intensificando-lhe o sabor a lapa com menos proteína. Embebeu-se o arroz com um caldo a saber a lapa e outro caldo apurado com as espinhas do salmonete. À altura do peixe, da mineralidade e frescura oceânicas está o Arinto Açores Sur Lies 3 colheitas, da Azores Wine Company. Uma escolha natural, tanto mais que o vinho reforça o pairing com algum “corpo e estrutura”, nota Acácio Oliveira.

Regado com um madeirense Tinta Negra 2021, o momento seguinte, outro exemplo de consistência, evoca de novo o Alentejo. Um terra-mar recriaria a ideia da carne de porco à Alentejana: optou-se pelo “Cachaço de porco Bísaro” com lagostim, túbera alentejana, duchesse olho de perdiz de pimenta da terra um Bulhão Pato da amêijoa da Fajã da Caldeira de Santo Cristo. Esta, “tem um sabor particular e veio dentro da casca para se perceber a excelência e consistência do produto que está ali”, sublinhou o chef. O menu termina como começou, comungando das especificidades do Pico. Serve um inesperado e proteico “Brulée de foie-gras” em que a doçura se reservou para as lateralidades: o açúcar da 'rocha de basalto', encimada por uma lapa de chocolate, a representação “lúdica” do areal dourado de Porto Santo, e um gelado feito de citronela e nêveda. A selar, o licoroso Thomas Jefferson 10 anos, também da Azores Wine Company.

Terroir açoriano

Iniciativas e menus destes contribuem para “quebrar um bocadinho barreiras mentais e culturais”. “Embora estejamos numa ilha, há pessoas que viajam muito e também estão ávidas desta experiência, baseada na cozinha de produto, maioritariamente local, com técnica e sabor, mas também trazendo muito do que é nacional ao encontro das nossas histórias, raízes e cultura, pontuando com produtos aceites internacionalmente”, analisa o chef.

Para José Gala, a paixão com que António Maçanita se dedica aos vinhos “é a mesma” que o chef deposita na comida. A produção de vinhos brancos nos Açores vive “um momento fantástico”. São feitos “de uma forma muito específica e as pessoas procuram isso, por saberem que não têm acesso ao que se faz ali noutra parte do mundo”. “Querem voltar às castas sem grande maquilhagem, que representem o terroir. Querem sentir a região de onde vêm os vinhos e como é que eles são naturalmente e o António faz isso em vários projetos. Para esta rota, quisemos trazer um produtor com raízes cá e que tem projetado a região e o país com produtos muito arrojados. Um produtor com ousadia e inquietação, que tivesse uma forma de transformar e apresentar produtos sem comprometer a sua identidade”, acrescenta Acácio Oliveira. A próxima edição das Rotas Insulana de Navegação realiza-se a 2 de novembro, de novo no restaurante Balcony, do Grand Hotel Açores Atlântico (Avenida Infante Dom Henrique, 113, Ponta Delgada, Tel. 296302200).

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