NESTE ALENTEJO, O VINHO TEM "SAL E PIMENTA" E Há FOGO EM TUDO O QUE SE FAZ

São 4h30 da madrugada e o despertador toca. Para nós é cedo, já para as abelhas é o horário perfeito, quando o calor do verão alentejano ainda não dá tudo de si, estando assim recolhidas nos seus afazeres.  

Para conhecer de perto esse trabalho, quando o ponteiro já marcava as 5h partimos então até junto de um dos 15 apiários com 599 colmeias da Herdade Aldeia de Cima, localizada em Santana, uma pequena aldeia no concelho de Portel, distrito de Évora.  

De fato colocado, chegamos perto das colmeias e sem nenhum fumo ou estratégia que incomode as abelhas para as afastar, observamos o seu trabalho, assim como o mel que escorria dos quadros no qual se alojam e dos quais tudo se aproveita: o mel, o pólen e até a cera. 

Mas ainda há muito mais para conhecer nos 3 mil hectares que constituem a Herdade Aldeia de Cima, propriedade da família Amorim desde 1994. Em 2017, fica nas mãos de Luísa Amorim e do marido, Francisco. 

“A propriedade já pertencia ao meu pai e eu já a conhecia bem. Claro que depois a partir do momento em que as propriedades passam para as nossas mãos, temos sempre a opção de fazermos o que queremos. Embora ele já tivesse começado um trabalho forte de plantação e hoje em dia temos cerca de ¼ de arvoredo que terá na ordem dos 20 a 30 anos”, conta à VERSA Luísa Amorim.  

Vendo o solo a apodrecer a as alterações climáticas a manifestarem-se, o casal questionou-se então. “De que forma podemos recuperar e manter esta propriedade extremamente saudável e sobretudo viva daqui a 30 anos? A nossa primeira preocupação foi essa”.  

Os passos foram tomados um de cada vez. Primeiro, optaram por voltar aos processos antigos e em vez de mecanização optaram pelo uso de ovelhas para uma regeneração natural da própria floresta. Aqui há desde sobreiros, dos quais se retira cortiça para uso dentro e fora da herdade, até medrinheiros, que dão origem ao medronho com assinatura Herdade Aldeia de Cima, que conhecemos num dos primeiros momentos e talvez mais especiais de 15 horas passadas na Herdade Aldeia de Cima.  

Recuar ao século XVIII com comida no fogo 

Nada se ouve além do vento e do chilrear dos pássaros na Horta dos Fontanais. Há uma serenidade que causa estranheza a quem acaba de chegar de Lisboa e ainda não teve tempo para perceber que está no Alentejo, ainda para mais num Alentejo diferente.

Estamos na Serra do Mendro, que atinge o seu ponto mais elevado na Herdade Aldeia de Cima e separa o Alto do Baixo Alentejo. Este local é também diferente por estarmos numa horta típica do século XVIII, circundada por um olival centenário murado a xisto e que serve de cenário ao que ali se vai passa.  

Prepara-se um jantar em modo slow food, preparado no fogo em panelas de ferro fundido de antigamente, e servido numa sala recuperada pelas designers de interiores Ana Anahory e Felipa Almeida, decorada com artesanato alentejano.  

Tudo nos faz recuar no tempo e nem ao presente voltamos quando é servida a sopa cozinhada em lume brando que dá início à refeição, também chamada de Jantar. Já que pode ser considerada uma refeição principal, tendo tudo o que nos satisfaz, incluindo um caldo aromatizado com hortelã, vegetais cozidos e ainda as carnes e enchidos que, como dizem os antigos, servem de conduto. 

Já o pão amassado no momento é feito no forno de lenha e servido ainda quente para mergulhar no azeite como manda a tradição portuguesa. E se há pão na mesa, também tem de haver o vinho e aqui entramos numa outra vertente da Herdade Aldeia de Cima.

A pimenta e o sal para a casta dominante 

É através do paladar que começamos a conhecer as vinhas da Herdade Aldeia de Cima, que vão desde a Vinha dos Alfaiates (plantada em patamares, a primeira do género no Alentejo), a Vinha da Família, a Vinha de Sant ’Anna, até à Vinha d’Aldeya.  

Cada uma tem as suas particularidades, assim como é particular cada vinho com assinatura da Herdade Aldeia de Cima. Uma delas é ideia que se mantém desde o início: usar as castas autóctones, que dão identidade ao projeto.  

“Quando estamos no Alentejo, devemos sentir o Alentejo e falar do Alentejo. Quando estamos no Douro ou no Dão é o mesmo processo. E se estamos em Portugal, vamos fazer um vinho português, se estamos em França, francês. Portanto, a identidade começa exatamente nesta origem. E porquê a importância da identidade? Para não perdermos o nosso foco, sobretudo o nosso caminho, a nossa inspiração. Se tudo for feito com base na origem, não vamos perder essa identidade. E a nossa identidade aqui na propriedade pode não ser igual, por exemplo, a 50 quilómetros daqui. Cada um terá certamente a sua identidade, porque os solos também não são iguais. A identidade é dada pela cultura local”, diz Luísa Amorim.  

Já o enólogo António Cavalheiro, que chegou à Herdade Aldeia de Cima em 2018, enaltece o desafio que é usar castas em desuso e nota que esse deve ser o caminho face ao que é feito no Alentejo atual. 

"Acho que o Alentejo atual só tem a beneficiar com o voltar um bocadinho às origens, voltar às castas autóctones, até porque o próprio clima tem-nos empurrado para essas decisões. Percebemos que as castas nativas têm uma adaptabilidade muito maior àquilo que é o aquecimento global”, explica.  

A Herdade Aldeia de Cima recupera assim o Alentejo de antigamente, incluindo no estágio em que são usadas pequenas tinajas de terracota, e o mais recente reflexo são os novos Myndru, que usam as castas da região, misturadas com “sal e pimenta”. 

“O sal e pimenta têm funcionado muito bem, em pequenas doses, como tempero que são. Quando falamos de sal e pimenta falamos acima de tudo de duas castas, baga no caso dos tintos, e alvarinho nos brancos, que são verdadeiras ferramentas para dar aos lotes frescura e acidez em anos mais quentes", explica o enólogo.  

Este é um resultado que se bebe, ora no Myndru Branco 2022, com as castas autóctones Roupeiro e Perrum e caracterizado pela elegância, fluidez, mineralidade e gravidade, ora no Myndru Tinto 2021, um blend de Alfrocheiro, Tinta Grossa e Baga, que perfaz um vinho com taninos são suaves, fresco, com profundidade e sofisticação. 

Ainda que sejam uma novidade, já nos questionamos se depois do sal e pimenta haverá uma malagueta para aguçar a oferta. 

“A malagueta poderá ser eventualmente um vinho de uma determinada parcela. Já temos os Myndrus, o branco da Vinha d’Aldeya e o tinto da Vinha da Cevadeira, poderá haver qualquer coisa da Vinha da Família, como poderá haver um exclusivo da Vinha dos Alfaitas. Poderá haver esse lado spicy”, aponta António. 

Enquanto isso, o folgo é tirado não por um picante, mas pela Aguardente de Medronho Herdade Aldeia de Cima.  

A partir da destilação de medronhos selvagens da Herdade Aldeia de Cima e de herdades vizinhas, os enólogos Jorge Alves e António Cavalheiro conseguiram obter a primeira aguardente do projeto alentejano, com 48% de teor alcoólico. Dizem que não há melhor digestivo e parece o indicado para finalizar uma taça de Jantar cozinhada no fogo ou umas migas alentejanas. 

As últimas 3 horas estão a contar 

Depois de visitarmos as abelhas, há que provar do seu néctar num pequeno-almoço servido no sopé da Serra do Mendro, com a manhã a arrefecer o café acabado de fazer, que acompanha o queijo fresco alentejano que decidimos regar com o Mel de Rosmaninho da Herdade Aldeia de Cima, já depois de o termos provado diretamente do favo de mel.  

Com doses de açúcar repostas, partimos em direção aos restantes espaços da herdade. Passamos primeiro no montado, considerado um dos três ecossistemas mundiais mais importantes para a conservação da biodiversidade, e acabamos na Adega Boutique, com balseiros de carvalho, cubas de cimento Nico Velo e pequenas tinajas de terracota e ânforas, produzidas com pó cerâmico sobre uma estrutura de fibras naturais denominada Cocciopesto. 

15 horas são poucas para descobrir tudo o que tem sido feito na Herdade Aldeia de Cima, nem saber todos os frutos que a natureza dará em diante, mas alguns já é possível provar.

A experiência de jantar no fogo servido na Horta dos Fontanais pode ser realizada mediante marcação prévia, assim como as provas dos vinhos da Herdade Aldeia de Cima.  

“Não temos nada padronizado, não somos uma cassete que se coloca. Vamos fazendo à medida das pessoas", refere Luísa Amorim. Quanto a um futuro alojamento, já faz parte dos planos. 

“Temos aí uma possibilidade de reconstruir uma casa. Não para o hotel, mas para ser uma casa mais pequenina, num conceito mais de turismo rural, portanto, também com a parte dos vinhos e por aí fora, para que as pessoas possam ter uma experiência de uma casa alentejana”, avança a responsável pelo projeto Herdade Aldeia de Cima.  

Os produtos aqui produzidos podem ser adquiridos na herdade, assim como em garrafeiras e lojas selecionadas. Para nota: Myndru Branco 2022 (€37,50), Myndru Tinto 2021 (€70), Herdade Aldeia de Cima Branco Reserva Branco 2022 (€17.50), Herdade Aldeia de Cima Branco Reserva Tinto 2021 (€17.50), Aguardente de Medronho (€65), Mel (€18).  

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